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sexta-feira, 16 de julho de 2021

O Grande Mentecapto - Fernando Sabino

Um clássico, Fernando Sabino... chegou até mim como presente de aniversário, cujo tema foi: "Não sei se caso ou compro uma bicicleta", o qual foi respondido, na dedicatória, com os seguintes dizeres: "Não sei se caso ou compro uma guitarra. Você vai amar esse livro." Talvez seja uma boa ideia investir em uma guitarra, assim como pretendo investir em uma bike.

Rodrigo do famoso Sebo do Ismael, obrigada pelo carinho, um livro é um presente irrecusável. Agradeço, acima de tudo, por ter me apresentado a esse Mentecapto que nos encanta, que nos faz rir, morrer de vergonha, sentir pena e pesar.

De nome Geraldo Boaventura, contrariado pelo próprio personagem que se apresenta como José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva, mas conhecido entre inúmeros codinomes como Geraldo Viramundo, é de origem simples, cuja biografia contada logo no início já me ganhou.

"Geraldo se tornou mesmo Viramundo no momento em que saiu de Mariana, ainda que o mundo que ele percorreu tenha sido apenas o de Minas Gerais."

Em muitos momentos, fez-me pensar em "Triste fim de Policarpo Quaresma", pelos ideais, pela sua ingenuidade, por ser uma grande piada para a sociedade, por lutar pelo que acreditava, pela inteligência ímpar e sensibilidade diante do que ocorria ao seu redor.

A história é apresentada por esse narrador tão próximo, que pesquisa a vida de nosso protagonista, segue seus passos, busca vestígios de histórias, até mesmo encontra a passagem por meio de uma tia e o perde de vista em meio ao enredo. 

"Viramundo de minha vida, quer vira Minas pelo avesso sem revelar aos meus olhos o seu mais impenetrável mistério (...) Minas de minha alma (...) mostrai onde se esconde esse vagabundo maravilhoso, esse meu irmão desvairado que no fundo vem a ser o melhor da minha razão de existir."

Tenta ser imparcial, mas está tão envolvido com a história que até nos questionamos se talvez Viramundo não é ele mesmo.

"Este ser engasgado, contido, subjugado é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, cigano, santo, poeta, mendigo e débil mental, Viramundo!"

Viramundo é um pouco de cada um, de cada pessoa que é marginalizada pela sociedade, é todo mundo e ninguém.

Determinado a ponto de fazer parar um trem, mesmo que isso custasse a sua vida; saiu de casa, procurou sua história; entrou no seminário, fez bons questionamentos a respeito dessa escolha, repensou, agiu, desmascarou, foi expulso. Não era seu lugar.

A impressão que temos é que Viramundo tenta encontrar sua missão, seu propósito, o seu lugar no mundo; e é preciso peregrinar com ele para acompanhar o final dessa trajetória, quando ele acalma-se e cumpre o seu destino. 

Interessante que ele tenta viver tudo que pode: apaixona-se loucamente por uma mulher inatingível; faz teatro; torna-se militar; conversa com cavalo e fantasma; sai em romaria; conhece pessoas variadas; briga; aceita ajuda; mantém sua simplicidade, carregando apenas o que cabe no bolso e sua história nos ombros; faz protesto; lidera um movimento; fica preso; fica perdido; fica quieto....

(O Grande Mentecapto virou filme em 1989. Vou assistir. Agendado para as férias)

É considerado por muitos como louco, tem até passagem pelo hospício; porém é dotado de conhecimento, inclusive de poesia, de ditos populares, de mundo. Tem senso crítico, é uma pessoa sensível e sabe reconhecer tal sensibilidade e sabedoria nas pessoas que surgem. Ele não passa é despercebido. Acho que essa é a grande sacada de nosso Mentecapto: marcar de alguma forma, esse foi o jeito que encontrou de fazer história, a sua história.

E título "O grande mentecapto" significa aquele que é mentalmente desordenado, que perdeu o juízo, o uso da razão, que é alienado, louco; tolo, idiota. Mas, apesar do significado e de ter episódios que revelem certa loucura, Viramundo se faz grande.

Diz o narrador, "O leitor já deve ter percebido que Viramundo entrava nas cidades e delas saía sem pedir licença (...)", e é da mesma forma que entre a sai de nossas vidas.

Gosto de observar quanto professora também, e atrevo me a dizer que não é um livro que deve ser lido em sala de aula, pelo menos não no ensino fundamental.

Devo destacar que o vocabulário não faz parte da nossa linguagem do dia a dia, é diferenciado, exige uma pesquisa por vezes, isso sem falar em trechos em francês, latim, espanhol... 

Assistindo a uma entrevista com Fernando Sabino no Roda Viva, indicada pelo querido Luciano, dono do Instagram cheio de poesia denominado "Um pensamento qualquer" (Sigam!), é comentado que ele usa uma linguagem simples. Simples para quem? Fiquei pensando o quanto a riqueza do vocabulário foi perdida da época em que foi escrito para o momento de hoje em que fiz essa leitura...


A entrevista é sensacional, é possível conhecer melhor esse escritor e notar quanta humildade, simplicidade, humor e inteligência. E o grande final que ele comenta o que diria para ele mesmo aos vinte anos: "Fique tranquilo, em tudo que você acreditava, eu continuo acreditando."

Quem tiver interesse, segue o link.

Sem mais. Um clássico que simplesmente vale a pena, por cada detalhe, por tanto! Leiam!

SELEÇÃO DE TRECHOS...

"Só quem passou a infância junto a um rio pode saber o que o rio significava para ele."

"Logo o trem ia se afundando na distância, levando consigo o barulho, a fumaça e a alegria dos meninos."

"Aquele seu filho é de fazer parar o trem."

"Esse menino às vezes me deixa admirado. Ele tem qualquer coisa que eu não sei não."

"Mas eu quero saber a diferença entre o padre e os outros homens. Por que os outros não podem ser representantes de Deus na Terra?"

"Todos nós somos um pouco viramundos, ou pelo menos trazemos no íntimo uma irrealizada vocação de peregrinos, mas o que nos faz largar um pouso é a procura de outro pouso."

"Por mais longa que seja a estrada, não há possibilidade de alguém levar dez anos para percorrê-la, a menos que adote o sistema que se tornou efetivo na administração pública de minha terra por tantos anos: um passo para a frente e dois para trás."

"Há quem diga que Viramundo passou esses anos às margens e ao longo da própria estrada, sempre desejoso de partir, nunca desejoso de chegar."

"Para tão longo amor, tão curta a vida!"

"Quem a velhice desmerece, pela língua apodrece."

"Cada um sabe o que sabe, com a fidência que lhe cabe."

"As grandes dores são mudas."

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"Não sois mulher que se disputa."

"(...) Caminhos e descaminhos de Viramundo."

"Barba cerrada e careca raspada: urubu camarada." (kkk)

"Todos os compromissos seriam resolvidos de boca e os compromissos assumidos no fio de barba."

"O inimigo estava em toda parte e em lugar nenhum."

"Lá estavam eles (...) como sentinelas da eternidade."

"Todos correndo aos trambolhões, tropeços e trompaços."

"Agora, o jeito é vender o resto das entradas, o espetáculo continua - e quem pariu Mateus que o embale."

"Quem tem coração aberto de Deus está sempre perto."

"Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura."


"- Para onde você vai?
- Para onde me levarem os meus passos."

"Era um movimento que nascera vitorioso."

"Havia nela qualquer coisa de vagamente familiar a seus olhos, como uma paisagem de sonho, ou de um mundo anterior em que já tivesse vivido."

"Onde você lê pela força das coisas, leia pela fraqueza dos homens."

Até a próxima postagem.
Eu de cá de férias,
temporariamente fora de serviço. Amém.
Aberta a temporada de tempo livre!
E estou pronta para minha viagem...