Páginas

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Quarto de Despejo - Diário de uma favelada - Carolina Maria de Jesus

"(...) o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. (...) Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade."


A primeira vez que ouvi falar sobre "Quarto de Despejo - Diário de uma favelada" foi em uma premiação de um Concurso de Poesia em 2019, em Monte Sião, que prestou homenagem à Carolina Maria de Jesus. Anotei o nome do livro, mas não o comprei na época. Foi por meio de um grande amigo, parceiro de profissão, que falou que eu precisava conhecer a obra e, como sempre, ele me convence com poucas palavras, porque sabe encontrar e valorizar uma boa história. Está aí, Marcelo, minha gratidão por mais uma indicação marcante.

Foi meu primeiro livro deste ano. Quem é apaixonado por esse mundo vai reconhecer esse perfil: ainda tem livros da última bienal, livros novos, coleções intocadas, mas compra outro e o passa na frente dos demais. Foi assim que Quarto de Despejo abriu a lista de livros lidos de 2021. E que livro!

Em forma de diário, Carolina conta seu dia a dia na favela, catando papel para vencer a inimiga diária e companheira de jornada: a fome. 

Dotada de um senso crítico acerca da realidade, dos problemas sociais, mostra tamanha inteligência em sua simplicidade e poesia na miséria. Uma mulher guerreira, que luta pela própria sobrevivência e dos filhos, que é exemplo vivo e sofrido da desigualdade social, que acorda cedo e se prepara para a dura guerra do cotidiano, sem saber o que a espera além do sol, da chuva, da fome e da língua afiada das mulheres da favela.

"Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar, eu escrevia."

E que lição de vida ela nos passa! A escrita era sua arma, seu escudo, seu alimento, seu consolo. As palavras lhe faziam companhia, abraçavam sua solidão dolorida, serviam de grito, de choro, de alegria e também de sonho. Seu diário era muito mais que um amontoado de palavras, um relato de seu dia como mulher negra e pobre da favela, mas era uma prova de vida, por mais desgraçada que essa podia ser, ainda era vida e merecia ser vivida e registrada.

"Todos têm um ideal. O meu é gostar de ler."


E o que acho formidável é o gosto dela pela leitura. Que diferença que o gosto e a prática fazem na vida de qualquer um, independente do nível de escolaridade.  Os livros permitem que as pessoas tenham um longo alcance de suas vistas, que vejam além da realidade e tornem-se mais sensíveis e críticas, como Carolina Maria de Jesus.

"Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem."

Também pode-se afirmar que ela era uma pessoa de caráter, íntegra, o que prova que o meio não é capaz de moldar a pessoa ou defini-la. De natureza boa, dava do pouco que tinha, quando tinha; demonstrava um olhar repleto de carinho, afeto e respeito pelas crianças; preocupava-se com as brigas violentas que ocorriam ao seu redor, recorrendo à polícia como grito de socorro... Mas não era boba, vestia uma armadura de mulher durona, porque a favela exigia essa postura para que sobrevivesse, não se deixasse intimidar por qualquer ameaça e nem apanhasse como outras tantas com as quais convivia ali.


O livro tem um gosto amargo e triste por ser real, por ser uma história que, infelizmente, será atemporal, porque os quartos de despejo crescem aos montes e lá são depositados, diariamente, todos aqueles marginalizados pela sociedade, pelo capitalismo, que são tratados como lixo, quando, na verdade, são os maiores guerreiros porque, de alguma forma miserável, sobrevivem.

"Hoje em dia quem nasce e suporta a vida até a morte deve ser considerado herói."

Acredito ser um livro que todo mundo tenha que ler em algum momento da vida, reconhecer a grandeza dessa mulher de fibra, de raça, gente da gente, porque é, acima de tudo, uma lição de vida.

"O que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor. (...) É preciso gostar de livros para sentir o que eu senti.


SELEÇÃO DE TRECHOS...

"Quando despertei o astro rei deslizava no espaço."

"Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o privilégio de gozar descanso."

"Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu caráter. A única coisa que não existe na favela é solidariedade."

"Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência."

"Todos nós temos o nosso dia de alegria. Hoje é o meu!"

"Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando."

"O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças."

"É um dia simpático para mim."
(Encontro trechos nos livros que são verdadeiras legendas para fotos.)

"O céu já está salpicado de estrelas."

"Quando estou na cidade tenho a impressão que estou  na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E, quando estou na favela, tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo."

"O que eu revolto é contra a ganância dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja."

"1 de junho. É o início do mês. É um ano que desliza."

"Os preços aumentam  igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista."

"Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria."

"O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também... A natureza não seleciona ninguém."

"Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar, só não cato a felicidade."


"Quando eu vou na cidade, tenho a impressão que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com suas úlceras. As favelas."

"O que eu preciso fazer eu faço sem achar que é sacrifício."

"Hoje eu não estou nervosa. Estou triste. Porque eu penso as coisas de um jeito e correm de outro."

"Um sapateiro perguntou-me se meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade."


"O custo de vida faz o operário perder a simpatia pela democracia."

"Eu dormi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo (...) Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas  na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organizaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.
Quando despertei, pensei eu sou tão pobre, (...) por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh'alma dolorida."

"Ao Deus que me protege, envio os meus agradecimentos."

"Fico pensando: os norte-americanos são considerados os mais civilizados do mundo e ainda não se convenceram que preterir o preto é o mesmo que preterir o sol. O homem não pode lutar com os produtos da natureza. Deus criou todas as raças na mesma época."

"O povo não sabe revoltar-se. Deviam (...) dar uma surra nestes políticos alinhavados que não sabem administrar o país."

"Este homem não serve para mim. Parece um ator que vai entrar em cena. Eu gosto dos homens que pregam pregos, consertam algo em casa."
(Boaaaaa kkkkk)

"A coisa mais linda é o sonho. (...) O povo brasileiro só é feliz quando está dormindo."

"Hoje eu estou triste. Deus devia dar uma alma alegre para o poeta."

"Tenho dó dessas crianças que vivem no Quarto de Despejo mais imundo que há no mundo."

"O gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravizá-lo. E, quando vai embora, não retorna, provando que tem opinião."

"A língua das mulheres é um pavio. Fica incendiando."

"A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós, quando estamos no fim da vida, é que sabemos como a nossa vida decorreu."

"A saudade é amostra do afeto."

"Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do Brasil bom..."

"Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer."

"Eu nunca tive sorte com homens. Por isso não amei ninguém. Os homens que passaram na minha vida só arranjaram complicações para mim."

"O que se nota é que ninguém gosta da favela, mas precisa dela."


Até a próxima postagem.
E seguimos um ano em que
não pulamos Carnaval... Como dizia
meu avô: não rasgamos a fantasia.
Da forma que foi possível, eu vivi meu Carnaval,
ao som das músicas que embalavam o dos anos 90...
O momento exige de nós a criação de uma nova realidade,
e que assim seja. Que não percamos a fé, a positividade 
e a esperança.
E, se não é possível viver um romance, 
que ele, ao menos, seja lido. 
Com vocês, Vossa Graça!